Moana e a dimensão arquetípica da Psique




Muitos indivíduos já viveram a experiência de terem pais amorosos e presentes, mas preocupados. Preocupados em evitar que seus os filhos sofram daquilo que um dia eles ou os seus ancestrais padeceram. Portanto transmitem inconscientemente um mito familiar que será passado de geração a geração, minando a força vital dos envolvidos, até que algum membro da família seja capaz de quebrar o elo da corrente.
No caso de Moana, tal mito transgeracional fere o cerne de sua alma. Ela possui um espírito heróico e aventureiro, representado pela figura anímica do semi-deus Maui, que simbolicamente foi lançado ao mar - o inconsciente - pela dificuldade de acolhimento e aceitação de sua família à essa característica de sua personalidade. Resulta que Maui perde o seu poder enquanto figura interior na psique de Moana. Ela precisa resgatar seu Animus e recuperar seu poder, simbolizado pelo anzol.



O arquétipo da mãe terrível, aqui representado por Te Ka, se constela na psique do indivíduo quando algo de essencial em seu ser não é acolhido por seu grupo familiar ou social. Moana quer ser “a filha perfeita” e procura se conformar à convenções e expectativas. Contudo, algo em sua alma se acende e se ilumina no contato com o inconsciente - o mar - e produz um chamado irresistível para resgatar aquilo que foi desprezado e por consequência restaurar a fonte da vida, simbolizada por Te Fiti, a imagem arquetípica da grande mãe, vida e criação em seu princípo.



Moana vive a experiência pessoal de acolhimento de sua personalidade como um todo na relação com sua avó, que percebe seu espírito aventureiro, mas não a força em momento algum a seguir o seu chamado. A vontade e o tempo interno de Moana são respeitados. O espaço livre e protegido é oferecido pela figura da avó. Por vezes, os indivíduos não encontram esse espaço em sua vida pessoal e precisam buscar auxílio em um processo psicoterapêutico que deverá oferecer o ambiente propício para a integração das partes rejeitadas da personalidade.



A fim de ir adiante em seu processo de individuação e tornar-se si mesma, Moana precisará do auxílio da dimensão arquetípica da psique, aqui representada pela imagem interior do espírito explorador e aventureiro de seus ancestrais, assim como pela figura anímica de sua avó na forma de arraia. O contato com tais figuras arquetípicas fortalece Moana para que ela possa mergulhar em seu inconsciente e resgatar Maui, sua figura masculina interior. Na psicoterapia o contato com imagens arquetípicas se dá através dos sonhos, da imaginação ativa, do Sandplay, dos recursos expressivos e da transferência.



Maui, como representação da porção masculina inconsciente na psique de Moana, sofre de um ferimento narcísico. Ele foi rejeitado e lançado ao mar, ele busca glória e reconhecimento através de feitos magníficos. Quantos indivíduos não buscam desesperadamente por amor, aceitação e acolhimento fazendo exatamente aquilo que imaginam que ser esperado deles? Quantas pessoas não passam a vida tentando agradar e realizar os desejos dos outros para então descobrir que nada que possam fazer pelo outro será capaz de preencher o vazio interior da separação de algo essencial em sua alma?




Moana mergulha nas profundezas do inconsciente, no mundo dos monstros interiores, precisa vencer o medo de confrontar-se com sua sombra, representada pelo siri narcisista que ostenta o anzol de Maui e outras relíquias preciosas em seu casco.
Quando partes essenciais da personalidade são rejeitados, isso causa uma ferida narcísica, um ferimento na maneira como o indivíduo se enxerga. Muitas vezes, como forma de defesa contra a dor e o sentimento de inferioridade, a imagem ferida é supercompensada pela atitude oposta. O indivíduo pode se apresentar com arrogância e superioridade nas relações ou passa a buscar objetos externos - dinheiro, fama, consumismo - como forma de autovalorização.



Moana de Motunui precisa confrontar o complexo de superioridade em sua sombra e reconhecer o valor da porção estupida de sua personalidade, representada pelo galo que a acompanha em toda a jornada. Apenas a aceitação daquilo que sentimos como pequeno, bobo e inútil em nossa maneira de ser é capaz de aliviar a necessidade de esconder nossas fragilidades  exibindo uma imagem sentida como irreal e inalcançável.



Cumprida a tarefa do confronto com a sombra narcísica, o anzol é restaurado e uma porção do Animus de Moana é integrado em sua personalidade. Contudo, juntos, Moana e Maui terão que enfrentar o perigoso arquétipo da mãe terrível constelado na figura de Te Ka. Assim como acontece na vida, por vezes somos postos diante de situações ainda mais desafiadoras após a integração de algum conteúdo à consciência. Neste momento, a nova atitude adquirida, mas que ainda não está solidificada pode sofrer algum dano, não aguentar o confronto com as circunstâncias e nos abandonar. É o que acontece com Maui, que tem o seu anzol danificado no confronto com Te Ka e abandona Moana. Em momentos como este, o ego se sente fraco e incapaz de continuar com a tarefa da individuação, apesar de já ter passado e vencido enormes desafios. Neste momento, se faz necessário o resgate da dimensão arquetípica. Na narrativa, Moana se reencontra com a imagem interior de sua avó acolhedora e se banha com a coragem da dimensão anímica de seus ancestrais viajantes; desta maneira, recobra as forças para continuar sua jornada heróica, enfrentar a mãe terrível e integrar sua figura de Animus.



Na vida cotidiana, podemos imaginar uma situação na qual o indivíduo assume socialmente a característica até então escondida e encontra uma rejeição ainda maior por parte daqueles que não a aceitam e que estão acostumados com a atitude anterior. Na perspectiva do ego, trata-se de um confronto inenarrável a tarefa de ultrapassar a falta de acolhimento do mundo externo, pois a rejeição constela o arquétipo da mãe terrível na psique do indivíduo. Contudo, encarar a face da mãe terrível de frente, como uma porção de nossa própria psique ferida é a única forma de restaurarmos a imagem interior de acolhimento e aceitação, e assim constelar o arquétipo da grande mãe. Quando Moana percebe que a terrível Te Ka nada mais é do que a face ferida de Te Fiti, então ela encontra coragem para se aproximar da mãe terrível e restaurar seu coração roubado, cumprindo assim, esta missão em seu processo de individuação.



O resultado psicológico desta jornada de integração e transformação de imagens interiores é o rompimento com o mito familiar neurótico e a restauração do fluxo vital e fonte de vida no individuo em questão, com a consequente possibilidade de transformação do núcleo familiar e social, conforme representado no final da jornada heroica de Moana pela caravana de barcos liderados por ela. 


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